Após denúncias de desmatamento ilegal protocoladas por uma associação de moradores da ecovila Condomínio Habitat, em São João d’Aliança, portal da Chapada dos Veadeiros, a Secretaria de Meio Ambiente e Desenvolvimento Sustentável de Goiás (Semad-GO) confirmou irregularidades e multou o proprietário da Fazenda Boa Vista em cerca de R$ 40 mil.
O dono do imóvel obteve licença para supressão de vegetação nativa do Cerrado em 400 hectares, mas extrapolou os limites permitidos e avançou sobre Área de Preservação Permanente (APP). Além disso, ateou fogo nos restos do material extraído, configurando um segundo crime ambiental.
“A secretaria fez a fiscalização e constatou que o proprietário da área havia desmatado em Área de Preservação Permanente, fora da licença. Essa área foi autuada e embargada. Em relação ao uso do fogo para limpeza da área, informamos que a licença expedida possui expressa vedação para essa prática. O texto diz: ‘Fica vedado o uso de fogo como técnica de supressão de vegetação ou limpeza de área’. As medidas administrativas relacionadas ao caso serão tomadas”, esclarece trecho da nota da Semad-GO enviada à reportagem. O Ministério Público, por meio da Promotoria de Alto Paraíso-GO, também vistoriou a região e instaurou notícia de fato criminal para apurar o caso.
O dono da fazenda é Antonio Carlos Lassi, fundador do Café Export. A empresa, no entanto, nega envolvimento e diz que o fazendeiro não mais integra a diretoria nem o quadro de sócios. Ainda assim, o site da companhia faz elogiosas referências ao histórico patriarca, enquanto outros integrantes da família seguem no comando oficial da marca.
“A área em questão está devidamente licenciada, conforme processo junto à Secretaria de Meio Ambiente do Estado de Goiás. Ressalto ainda que Antônio Carlos não é proprietário do Café Export. Quanto ao acesso à propriedade, o mesmo tem evitado, uma vez que alguns usuários provocaram incêndio na área. Quanto à multa, ainda não tem conhecimento da mesma”, informou um representante do fazendeiro por meio de nota.
O caso, que se encaminha para um litígio judicial, foi denunciado por moradores de uma comunidade rural, no início do mês passado, quando o desmatamento passou a ser notado. O temor das famílias da região é de que a nova atividade na fazenda vizinha comprometa a qualidade das fontes de água que as abastecem. Além disso, reclamam da restrição ao acesso às cachoeiras do Vale do São Pedro, historicamente visitadas pela população local e turistas.
“Atualmente, no Goiás, não há exigência de Estudo de Impacto Ambiental para desmatamento em áreas de até 500 hectares. Isso é um grande equívoco, pois o Cerrado é um bioma extremamente sensível, com inúmeras espécies ameaçadas de extinção. Além disso, nesta situação específica, é possível que haja danos a fontes de água que abastecem uma comunidade instalada há mais de 20 anos. Somos 168 chácaras e temos direitos fundamentais a serem preservados”, argumenta um morador.
Um trabalhador rural local, que costumava coletar frutos nativos, como araticum e pequi, na área agora devastada, reclama da perda de oportunidade no complemento da renda. “Cresci nessa região. Pensava até que tudo fosse uma grande reserva. Aproveitava as cachoeiras e colhia os frutos da estação para consumir e vender. É muito triste ver tudo destruído tão rapidamente”, lamenta.
Secretário municipal de Turismo e Meio Ambiente, Geraldo Bertelli, um histórico e atuante personagem no segmento em São João d’Aliança, observa a situação com tristeza e resignação. “Ver o Cerrado ser extraído não me traz nenhuma felicidade. Podemos fazer uma tratativa com o dono da fazenda para ver qual seria a possibilidade ou interesse dele de desenvolver os atrativos naturais, respeitando, claro, a vontade do proprietário. Se as terras são propícias para o agro, o fazendeiro se reserva o direito de fazer o que bem lhe convier dentro dos parâmetros legais, respeitando os 20% de reserva legal e as demais áreas de APP. Só nos resta respeitar as leis que nos foram impostas. Caso haja desvio de conduta, temos legislação a cumprir”, diz.
De acordo com o Ministério do Meio Ambiente e Mudança do Clima, as regiões da Serra do Paranã e do Vale do Paranã, onde estão localizadas a Fazenda Boa Vista e a ecovila Condomínio Habitat, são classificadas como de prioridade Extremamente Alta para a Conservação, Utilização Sustentável e Repartição dos Benefícios da Biodiversidade Brasileira. É o nível mais alto. Existem diversos registros, ainda não sistematizados, da presença de espécies ameaçadas de extinção, tais como onça-pintada e anta. Modelos científicos sugerem que a Serra atua como um corredor ecológico entre o Distrito Federal e o Parque Nacional da Chapada dos Veadeiros.
“Apesar disso, poucos estudos sobre quais espécies ali ocorrem e o tamanho das populações foram feitos até o momento. Corre-se o risco de perder o que nem conhecemos, até mesmo espécies que podem sustentar atividades extrativistas”, explica o analista ambiental Samuel Schwaida. “A serra também abriga centenas de nascentes que abastecem os rios e comunidades, podendo haver impacto na vazão e na qualidade da água consumida pelas populações, prejudicando a saúde, espécies e até mesmo as atividades produtivas da região”, completa.
Outros serviços prestados pelas áreas naturais são a regulação térmica e a polinização. A diminuição da vegetação nativa pode resultar na redução das populações de espécies polinizadoras, o que pode impactar na produção. “A conservação das áreas naturais da Serra do Paranã não só beneficia a biodiversidade, mas também a principal atividade econômica do município (a agricultura), a qualidade de vida da população e ainda sustenta o ecoturismo. Porém, paisagens e rios degradados não fornecem boas experiências aos visitantes e tendem a ser evitadas”, finaliza Schwaida.
Presente em 13 estados, o Cerrado é o segundo maior bioma da América do Sul e o mais ameaçado do Brasil. De acordo com dados do Instituto Chico Mendes de Conservação da Biodiversidade (ICMBio), são 300 espécies em “risco de extinção”, sendo que 64 delas estão “criticamente em perigo” e 100 em “perigo”.
A savana com a maior biodiversidade do mundo abriga 5% da vida biológica do planeta — são cerca de 30 espécies por metro quadrado. Mas tem sofrido com o desmatamento. Segundo o Instituto Nacional de Pesquisas Espaciais (Inpe), entre agosto de 2022 e julho de 2023, os alertas de desmatamento no Cerrado cresceram 16,5% em comparação com o ano anterior: foram 6.359km² de vegetação destruída. A estimativa é de que mais de 50% de todo o bioma foi desmatado.
Segundo Marcos Woortmann, cientista político, mestre em direitos humanos pela Universidade de Brasília (UnB) e coordenador de políticas socioambientais do Instituto Democracia e Sustentabilidade (IDS), o Cerrado sofre por uma falta de legislação que proteja o bioma. Hoje, enquanto na Amazônia há um limite de 20% de desmatamento máximo em áreas rurais, no Cerrado é ao contrário: 80% podem ser desmatados. “Isso gera uma cultura de aprovar os licenciamentos praticamente sempre até o limite daquilo que é possível”, explica o professor.
Hoje, há no Senado um Projeto de Lei que tenta mudar o panorama de desmatamento do Cerrado. O PL, de autoria do senador Jorge Kajuru (PSB/GO), estabelece o mínimo de 35% de Reserva Legal em propriedades rurais. A proposta, no entanto, enfrenta forte resistência da bancada ruralista e dificilmente avançará. Foi reprovada na Comissão de Agricultura e aguarda parecer do colegiado de Meio Ambiente. “Manter o Cerrado conservado ajuda na reciclagem e na produção de água. Isso é fundamental para garantir a estação chuvosa de que os agricultores precisam”, justifica Kajuru na proposta.
Para o professor Marcos Woortmann, mudar a legislação é um dos pontos principais para diminuir o desmatamento. “A questão não é se ele está mais ameaçado. O Cerrado neste momento está na alça de mira do agronegócio. Existe todo um modelo geopolítico que é baseado no desmatamento do Cerrado”, enfatiza.
Apesar de o clima no Cerrado ser marcado pelo inverno seco, o bioma é conhecido como o “berço das águas” e “caixa d’água do Brasil”, pois nascem nele oito das 12 principais bacias hidrográficas do país. Por isso, explica Marcos Woortmann, os benefícios de preservar o Cerrado vão além de para quem vive no bioma. É uma questão de “segurança hídrica nacional”. De acordo com o professor, as consequências da devastação do meio ambiente estão sendo sentidas. “Estamos vendo a redução de chuvas e ondas de calor em diversos lugares”, lembra.