Por: Guilherme Henrique Cardoso,
Campos Belos (GO) é uma cidade atravessada por muitas origens, mas que ainda hesita diante do próprio espelho. Carrega nas esquinas o sotaque mineiro que chegou com os tropeiros, os sabores da Bahia que se consolidou na Vila Baiana , e nos gestos dos mais antigos o legado persistente das comunidades quilombolas que seguem vivas — discretas, mas inteiras. Há, por aqui, um entrelaçamento de pertencimentos, como um tecido costurado por mãos diversas, mas que ainda não encontrou a própria forma. E talvez por isso mesmo, por ter tanto de fora, Campos Belos ainda tateia quando tenta dizer o que, afinal, é de si.
Essa identidade em trânsito não é uma falha — é uma ferida aberta pela ausência de escuta. A cidade cresceu como quem improvisa, respondendo a urgências, esquecendo de registrar os nomes que a sustentaram. Quem foram os que vieram antes? Onde se guardam suas histórias? O que não se conta, se perde. O que não se nomeia, se apaga. E o silêncio da história, por mais sutil que pareça, reverbera na forma como as pessoas se relacionam com o lugar: uma relação de uso, não de afeto; de passagem, não de permanência.
Aqui, as tradições não foram completamente enterradas — mas tampouco celebradas como deveriam. As festas existem, os saberes populares resistem, os mais velhos lembram — mas quase sempre à margem das instituições, como se a memória fosse um detalhe ou um ruído de fundo. É a cidade do quase: quase goiana, quase sertaneja, quase nordestina. E nessa quase-identidade, mora um risco: o de que o futuro se construa sobre um chão simbólico raso, vulnerável às seduções imediatas, incapaz de sustentar um sentimento coletivo que vá além do agora.
Mas há potência nessa instabilidade. Em vez de buscar uma origem única, Campos Belos pode — e talvez deva — abraçar suas fissuras como força. Ser muitas ao mesmo tempo, e ainda assim ser inteira. Para isso, é preciso reconhecer o valor do que ainda não foi arquivado, nem oficializado: as memórias orais, os gestos cotidianos, os modos de vida que escapam às atas e aos monumentos. A memória cultural do futuro não será feita apenas do que já foi escrito — mas do que ainda pode ser escutado, resgatado, cuidado.
Mais do que preservar datas e nomes, trata-se de recuperar um sentimento. Uma cidade só é de fato habitada quando passa a habitar também quem nela vive. Quando há vínculos, raízes, referências. Campos Belos precisa começar a se narrar — não como reflexo dos outros, mas como encruzilhada de si. A história que ainda não foi contada não é ausência: é possibilidade. E o futuro, para ser firme, precisa que o passado seja lembrado não como pedra, mas como voz.