De 2017 a 2021, Goiás figura como o vice-líder em número de pessoas resgatadas pela fiscalização do trabalho em condições análogas à escravidão, com 609 registros. Minas Gerais lidera com 2.603 casos. Em uma série histórica mais abrangente, de 1995 a 2020, foram 4.109.
O número consolidado pelo Smartlab é maior que a população de um terço de cada um dos 246 municípios do estado. Uma das localidades que se encaixa neste perfil é São Miguel do Passa Quatro, onde vivem 4.105 habitantes, conforme a última estimativa do IBGE.
Os registros são mais comuns no campo e alcançam principalmente a população masculina com pouca escolaridade, negra ou parda, idade na faixa dos 20 a 45 anos e residente em localidades onde há poucas oportunidades de emprego.
Até 2020, apenas 45 municípios de Goiás não tiveram registro de pessoas resgatadas em condições análogas à escravidão. A prática, no entanto, é encontrada em todas as regiões do estado. Entre os dez municípios com mais casos estão Quirinópolis (1º) e Catalão (7º), na região sudoeste, e Brazabrantes (4º). A cidade vizinha à capital tem a décima primeira menor área, com 125,3 km² e 181 resgates. O número é o mesmo de Cristalina, com 6.153,9 km², 49 vezes maior que o primeiro e detentor do título de maior perímetro irrigado por pivô central da América Latina, conforme a Agência Nacional de Águas e Saneamento Básico (ANA).
Chefe do Setor de Fiscalização do Trabalho em Goiás, Afonso Borges afirma que há muita terceirização, não raro organizada pelo “gato”, espécie de figura que reúne mão de obra, sobretudo nas regiões Norte e Nordeste do País. “Ele não é simplesmente, como ocorria nos anos 1990 e 2000, alguém sem instrução que arregimenta os trabalhadores. Muitas vezes ele constitui a empresa, mas na verdade é apenas uma roupagem jurídica”, explica. A legislação do trabalho brasileira tem como um dos preceitos a Responsabilidade Solidária. Desta forma, mesmo quem terceiriza o trabalho, é responsável perante a lei.
Na última semana, 33 pessoas que prestavam serviço em uma usina de cana-de-açúcar foram retiradas do trabalho análogo à escravidão, conforme Borges. Quando situações como esta ocorrem, deve ser obedecido o Fluxo Nacional de Atendimento às Vítimas de Trabalho Escravo. Os termos são estabelecidos pela Portaria Nº 3.484/2021, expedida pelo Ministério da Mulher, da Família e dos Direitos Humanos. Em resumo, os órgãos públicos devem identificar os trabalhadores, exigir o pagamento das verbas rescisórias e encaminhar a pessoa para o local de origem. Há também a emissão das guias de seguro-desemprego para o recebimento de três parcelas no valor de um salário mínimo cada.
Também é prevista a judicialização de questões que não tenham sido resolvidas administrativamente. Entre elas estão ações de dano moral, tanto individual quanto coletivo, ambas de responsabilidade da Defensoria Pública da União (DPU) e do Ministério Público do Trabalho (MPT). A situação das pessoas também deve ser monitorada. Apesar das previsões legais, há casos de trabalhadores que são resgatados mais de uma vez.
Entre os últimos cinco anos, 2021 foi o que teve mais registros: 304. Um dos fatos que impactaram para o crescimento frente aos resultados de anos anteriores foi uma ação, realizada em outubro. Nela foram localizados 116 trabalhadores, entre eles cinco adolescentes, em condições análogas à escravidão no distrito de São Gabriel, município de Água Fria, na região nordeste do estado. Eles atuavam em uma fazenda que fazia a extração de palha de milho para a produção de cigarros.
O MTP divulgou à época que as pessoas dormiam em redes ou em colchões no chão e recebiam alimentação inadequada. Os alojamentos eram superlotados e o pagamento de R$ 5 por quilo de palha extraída. Os direitos trabalhistas somaram R$ 903 mil.
Procurador do trabalho do MPT em Goiás, Marcello Ribeiro atribui o aumento do número de resgates à criação de um grupo de trabalho que envolve a Superintendência Regional do Trabalho em Goiás (SRT), o MPT-GO, Defensoria Pública, Procuradoria Geral da República (PGR) e polícias Federal (PF) e Rodoviária Federal (PRF).
As denúncias constituem, conforme Ribeiro, uma importante ferramenta. O procurador explica haver um planejamento anual das ações de combate ao trabalho análogo à escravidão. “Nós as pegamos (as denúncias) e as colocamos em uma agenda. Elas são atendidas de acordo com a prioridade que nós elegemos”, diz.
Configuração
O trabalho análogo à escravidão é definido com base em quatro pilares: trabalho forçado, jornada exaustiva, condição degradante e condição análoga à de escravo. Este grupo de requisitos inclui a privação do direito de ir e vir, submissão do trabalhador por meio de ameaça de punição, retenção de documentos, cobrança de dívida contraída com o empregador, que em alguns casos ocorre com a manutenção de segurança armada.
Denúncias da prática no Brasil podem ser feitas, anonimamente, por meio de vários canais, como o Disque 100 ou Disque 180, sites do Ministério da Economia e Sistema Ipê (https://ipe.sit.trabalho.gov.br/#!/).
Goiás tem sete na Lista Suja
Uma das penalidades aplicadas a quem submeta pessoas a condições severamente degradantes é a inclusão na Lista Suja do trabalho escravo. Nela são inscritas pessoas físicas ou jurídicas que tenham tido julgados procedentes autos de infração pela prática irregular. A relação de Goiás tem atualmente seis fazendas e uma construtora.
Dos sete integrantes da Lista Suja, apenas a construtora é representada por CNPJ. Todos os demais são de CPF. As fiscalizações ocorreram de 2017 a 2020. Neste período, 305 trabalhadores foram resgatados no estado. Mesmo o número de ocorrências sendo bem menor que o de resgates, a quantidade de empresas na lista é pequena. Procurador do Trabalho em Goiás, Marcello Ribeiro explica que um dos motivos é que o período de permanência no cadastro negativo é de dois anos. “Acontece também de muitas empresas entrarem com ação na Justiça e conseguirem tirar o nome antes deste período”, acrescenta.
Na prática, a lista suja restringe o acesso ao crédito para as pessoas físicas ou jurídicas. Isto também impede algumas certificações exigidas para estabelecer negócios com alguns mercados, o que leva à ocorrência de prejuízos econômicos.
Apesar das previsões legais, a aplicação das restrições da Lista Suja nem sempre ocorre. Em outubro do ano passado, o Banco Nacional do Desenvolvimento Econômico e Social (BNDES) divulgou que iria apurar a concessão de crédito a organizações incluídas no cadastro negativo. A medida foi tomada após revelação da Repórter Brasil. O caso em questão se referia a frigoríficos que atuavam na Amazônia, em áreas desmatadas, algumas delas sobrepostas a terras indígenas.
A aprovação da Emenda 81 à Constituição Federal (CF), em 2014, estabeleceu que no Brasil pode haver a expropriação dos imóveis onde for verificada a ocorrência de trabalho análogo à escravidão. No entanto, a redação do artigo 243 da CF diz que a medida será aplicada “nos termos da lei”. Esta questão ainda está em aberto e há vários projetos de lei em tramitação no Congresso. Após a perda da propriedade, a previsão é que o imóvel sirva à reforma agrária ou a programas de habitação popular.
Secretário-geral da Comissão de Direito do Trabalho da Ordem dos Advogados – Seccional Goiás (OAB-GO), João Paulo Chaves Arantes considera que o cenário global é avesso à prática. “Qualquer tipo de situação desta natureza é muito importante não deixarmos acontecer. Nós estamos em 2022 e não temos como aceitarmos uma situação desta.”
O advogado lembra que há também a possibilidade de responsabilização criminal. Ela está expressa no artigo 149 do Código Penal. O texto prevê reclusão de dois a oito anos e multa. A OAB-GO, afirma Arantes, atua quando a prática implica em prejuízos socioeconômicos aos trabalhadores.
Exemplo
O chefe do Setor de Fiscalização do Trabalho em Goiás, Afonso Borges, considera que a recorrência na prática irregular é baixa. Ele também ressalta a importância da fiscalização. “Quando há uma autuação, isso provoca grande mudança de comportamento nos pares da região”, diz.
Mesmo com mudança de perfil, cana ainda lidera ranking histórico
No período de 1995 a 2020, a quantidade de trabalhadores resgatados no cultivo da cana de açúcar (814-um a cada cinco dos 4,1 mil) e fabricação de álcool (321) totalizou 1.135. Respectivamente, as atividades ocupam a primeira e a quinta posições na série histórica.
O ano de 2008 foi o que teve a situação mais crítica, com 777 registros, se somadas as duas atividades. Nos anos mais recentes o panorama mudou. Em relação ao cultivo, de 2000 a 2020, houve cinco anos com incidência constatada pela fiscalização. De 2016 a 2021, não constam resgates de trabalhadores. A principal explicação pode ser a mecanização. A colheita passou a ser mecanizada na quase totalidade, dispensando grande volume da mão de obra. A situação da fabricação de álcool, que nem sempre é a produtora da cana que processa, segue o mesmo curso.
Presidente do Sindicato da Indústria de Fabricação de Etanol do Estado de Goiás (Sifaeg), André Rocha reconhece os problemas que ele afirma terem ficado no passado. Ele explica que, de 2005 a 2008, o setor dobrou de tamanho, e foi neste período que ocorreram os principais problemas. “Nós firmamos um pacto de melhorias das condições de trabalho na colheita de cana em 2009”, afirma Rocha.
O presidente acrescenta que há interesse do próprio setor em monitorar a questão, uma vez que as usinas são cobradas pelos parceiros comerciais. “Nós queremos manter as nossas certificações, o ESG (sigla em inglês que trata de boas práticas ambientais, sociais e de governança) é muito valioso para nós”, diz ao lembrar que isto implica na abertura de mercados e concessão de crédito mais barato.
O presidente da Federação dos Trabalhadores Rurais Empregados Assalariados do Estado de Goiás (Fetaer), José Maria de Lima, afirma que nos últimos anos foram “bastante tranquilos”, quanto às condições de trabalho.
As posições de segundo a quarto ficam com as seguintes atividades: cultivo de plantas de lavoura temporária não especificadas (631-trabalhadores resgatados), produção florestal-florestas nativas (436) e criação de bovinos (414).
Embora o campo tenha maior predomínio de casos na série histórica, o meio urbano também tem apresentado desrespeitos graves à legislação do trabalho. Até 2020, há 195 resgates na construção civil, o que confere à atividade a sétima posição no ranking estadual. A reportagem pediu um posicionamento ao Sindicato da Indústria da Construção Civil de Goiás, mas não houve resposta.
Homem viveu dos 12 aos 38 em atividade degradante
Natural de uma cidade no entorno do Distrito Federal, Raimundo (nome fictício) trabalhou dos 12 aos 38 anos em condições degradantes. A fiscalização do trabalhou o encontrou em 2004, em uma fazenda do sul do Pará, onde fazia a derrubada de mata nativa.
O desmatamento era ilegal. “Se ele (fazendeiro) tinha licença para derrubar 50 alqueires, tirava 100, 200”, lembra Raimundo.
Ele conta que, até aquele dia, passo por muitas fazendas, onde conviveu com condições sanitárias precárias, ameaças e vigilância, além do não pagamento por parte dos serviços prestados. “Quando eu chegava em uma fazenda que eu percebia ameaça, eu fugia, às vezes de madrugada. Eu falava com meus companheiros ‘vocês vêm comigo? Muitos tinham medo e ficavam’”, recorda.
O trabalhador narra que não reconhecia que o que ele passava, banhando em córregos onde gado bebia água “barrenta”, entre outros dissabores, era trabalho análogo à escravidão.
Raimundo foi localizado em uma fazenda por auditores fiscais do trabalho. Em um lugar de difícil acesso, a cerca de 70 km da cidade. “Eles anotaram nosso nome e disseram para a gente: ‘vocês fiquem aqui, nós vamos até a cidade buscar um ônibus para levar vocês’”.
Em seguida, após os fiscais darem as costas para o local, o fazendeiro deixou o ponto onde se escondia, em uma mata, e prometeu pagamento a eles.
Parte do grupo aceitou e foi induzido a caminhar na mata, já tarde da noite. “Eu estava com dengue, com muita dor no corpo”, lembra Raimundo. Eles foram levados para a cidade, onde o fazendeiro iria, em pouco tempo, pagar os direitos deles. No entanto, isto não ocorreu.
O trabalhador procurou a pastoral da terra e só conseguiu ter acesso às verbas trabalhistas após um processo na Justiça. Foram dois anos.
Cenário
Raimundo lembra que, na fazenda onde foi localizado pelos agentes do Ministério do Trabalho, era difícil dormir. “Era muito apertado, um amontoado de rede e colchão.”
Comida, diz ele, não faltava, mas às vezes uma das três cozinheiras adoecia ou ia embora e um dos homens era designado para a função. O homem conta que o trabalho começava cedo, com o barulho das motosseras, e seguia até o fim do dia. A folga era aos domingos.
Naquele lugar sem acesso fácil a serviço de saúde, muitos já se precaviam e levavam os próprios medicamentos. “Ou então, o ‘gato’ leia mais na página 18) vendia. Eles comercializavam baralho também, jogavam com o pessoal, que perdia dinheiro e não ficava com nada. Eles levavam roupa, equipamento de trabalho também pra vender para a gente, só que era muito caro.”
Raimundo deixou Goiás cedo, após o avô, mãe e irmãos saírem daqui. Ele trabalhava com plantio, derrubada ou outra atividade que aparecesse.
Após deixar aquela experiência para trás, nunca mais foi exposto ao trabalho análogo à escravidão. Hoje, já um senhor com mais de 50 anos, ganha a vida na cidade com carteira assinada. O medo o acompanhou por muitos anos, por ter visto companheiros serem ameaçados de morte. Atualmente, diz que não teme mais isto.
Pastoral prega direitos
O frade dominicano Xavier Plassat, da Comissão Pastoral da Terra (CPT), entende que o trabalho análogo à escravidão precisa ser enfrentado de frente. Ele lembra que avanços ocorreram a partir de 2013, quando foi aprovado um plano para erradicar a prática.
Para a questão avançar, ele considera ser preciso melhorar a educação, fazer justiça social com a terra e conscientizar as pessoas. “Esta prática se perpetua desde 1888, com as mesmas vítimas: 70% a 80% delas são pessoas de cor negra. Isto é a prova dos nove que continuamos em um sistema que nasceu há séculos”, diz ele, que é um dos coordenadores da campanha da CPT contra o trabalho escravo.
Plassat também enfatiza a necessidade de o Brasil expropriar os imóveis onde for identificada a prática do trabalho análogo ao escravo, conforme prevê a Constituição Federal.
Ele faz um convite para que a população assista ao filme Pureza, protagonizado pela atriz Dira Paes. A narrativa conta a história de uma mãe que teve o filho desaparecido após sair para trabalhar. No enredo, ela testemunha e documenta o trabalho escravo no País. A estreia será no próximo dia 19.
Fonte e texto: O Popular