Goiás possui 1.721 Colecionadores, Atiradores desportivos e Caçadores (CACs) com os certificados de registro vencidos. O número, fornecido pelo Exército, foi atualizado no dia 25 de outubro deste ano. Especialistas apontam que as estratégias atuais de fiscalização de pessoas nessa situação são insuficientes e que o cenário atual diminui o controle sobre a circulação de armas de fogo e aumenta a possibilidade do desvio de armamentos.
O gerente de projetos do Instituto Sou da Paz, Bruno Langeani, explica que o Exército não possui uma política forte de estímulo à renovação do registro. “O CAC não recebe nenhum tipo de aviso de que o vencimento está próximo, por exemplo.” Caso opte por não renovar o registro, um CAC pode vender as armas que possui para outro CAC. Na prática, se uma pessoa for flagrada com uma arma de fogo sem o registro válido no Exército ou na Polícia Federal, ela pode responder pelo crime de posse e porte ilegal de arma de fogo.
Langeani esclarece que o momento da renovação é importante, já que é quando o CAC passa por novo teste psicológico e apresenta documentações referentes à ficha criminal e processos judiciais. Ele considera que quanto mais CACs com o registro vencido, mais difícil é o controle da circulação de armas no País. “Não dá para saber se essa pessoa morreu, se ela vendeu as armas que tinha, se elas ainda estão na posse dela, se foram desviadas ou se foram parar na mão do crime organizado. É um risco para a sociedade.”
O presidente Jair Bolsonaro (PL) aumentou o tempo de validade do registro de cinco anos para dez anos. Langeani acredita que caso a legislação atual, especialmente no que diz respeito ao prazo de vencimento do registro, não sofra alterações, o cenário pode se agravar ainda mais, já que desde 2019 houve uma explosão do número de CACs e clubes de tiro no Brasil. Em 2019, eram 200,1 mil CACs no País. Em 2022, 673,8 mil. “Quanto mais distante fica uma renovação, mais fácil é de se perder o controle”, enfatiza.
A reportagem chegou a questionar o Exército sobre quantos CACs existem em Goiás para comparar com a quantidade de pessoas com registro vencido. Entretanto, a instituição informou que esse dado é divulgado apenas por região militar. Junto com o Distrito Federal, Tocantins e o Triângulo Mineiro, o estado compõe a 11ª Região Militar, que em 2022 tinha 85,7 mil CACs com registros ativos. Em 2019, quando Bolsonaro fez as principais mudanças legislativas sobre CACs, eram 18 mil.
Fiscalização
Em 2020 e 2021, de acordo com informações da Diretoria Federal de Produtos Controlados (DFPC) fornecidas ao Fórum Brasileiro de Segurança Pública (FBSP), as visitas de fiscalização a proprietários de armas com registros expirados/inativos na 11ª Região Militar foram suspensas por conta da pandemia da Covid-19. Em 2019, segundo o Anuário Brasileiro de Segurança Pública de 2021, foram 273 visitas de fiscalização a proprietários de armas de fogo em Goiás.
Apesar da falta de dados da 11ª Região Militar motivada pela Covid-19, é possível notar uma tendência de fiscalização reduzida no restante do País, que também apresentou um crescimento de CACs. Mesmo assim, apenas 622 visitas de fiscalização a proprietários de armas com registros expirados/inativos foram feitas em 2021, sendo que 392 armas foram apreendidas. No mesmo ano, só 10 atiradores desportivos perderam as licenças por falta de assiduidade em clubes de tiro, o que é exigência segundo a legislação atual.
A quantidade de clubes de tiro no estado também cresceu seis vezes, saindo de 13 Cadastros Nacionais da Pessoa Jurídica (CNPJs) ativos, no início de 2019, para 82, em novembro de 2022. Apesar disso, em 2021, apenas 193 fiscalizações nesse tipo de estabelecimento foram feitas pelo Exército Brasileiro em toda a 11ª Região Militar.
O estudioso do tema e professor de Direito da Universidade Federal de Goiás (UFG), Saulo Coelho, pontua que a Covid-19 tem sido usada como “escudo” pelo poder público para justificar a falta de atuação em algumas áreas. “Certas ações, como essa, são prioritárias e tem o risco de contaminação relativamente baixo, já que as fiscalizações são individuais”, destaca. A reportagem questionou o Exército se as ações de fiscalização na 11ª Região Militar foram retomadas em 2022, mas até o fechamento desta edição não obteve resposta.
Controle maior é promessa do novo governo
O reforço da fiscalização dos CACs com registros vencidos é uma das promessas do governo de transição do presidente eleito, Lula (PT). Nesse âmbito, a expectativa é de que o prazo de validade do registro dos CACs diminua e que se crie um QR Code nos clubes de tiro para comprovar a frequência dessas pessoas nesses locais. Também deverá ocorrer a integração de sistemas e banco de dados do Exército, que cuida dos CACs, e da Polícia Federal, que cuida da posse e do porte de civis.
Segundo especialistas, deverá ser criado um órgão específico como, por exemplo, uma secretaria dentro do Ministério da Justiça para controlar a circulação de armas no País. “O Exército não tem uma estrutura adequada para cuidar desse assunto. O que os CACs têm a ver com a defesa nacional? Casos como o do ex-deputado Roberto Jefferson (tentou resistir a prisão dentro de casa com o registro de CAC vencido e em posse de um fuzil) deixam claro que o Exército Brasileiro tem sido incompetente em promover uma fiscalização de qualidade”, pondera o gerente de projetos do Instituto Sou da Paz, Bruno Langeani.
Outra mudança que deverá ser feita é o fim do porte de trânsito de arma municiada entre local do acervo e clube de tiro que tem funcionado, na prática, com uma espécie de porte de arma irrestrito. Os CACs também deverão voltar a ser divididos em níveis. O avanço de um nível para o outro dependerá do tempo de prática esportiva e participação de competições, o que estará diretamente atrelado à quantidade de armamentos que o CAC poderá ter em acervo.
O senador eleito pelo Maranhão e integrante do governo de transição, Flávio Dino (MA), já afirmou que os decretos e portarias que flexibilizaram o acesso às armas devem ser revogados. “O ‘liberou geral’ é uma irresponsabilidade.” Com isso, a obtenção do registro e o acesso a armas e munições deve ser mais rigorosa.
O novo governo deve seguir o mesmo tom da decisão, de setembro deste ano, do ministro do Supremo Tribunal Federal (STF), Edson Fachin, que suspendeu trechos de decretos de Bolsonaro que flexibilizam o uso de armas. Na prática, ele limitou o acesso às armas de uso restrito, como fuzis semiautomáticos, para as Forças de Segurança e Defesa e também limitou a quantidade de munições que podem ser compradas a um parâmetro de proporcionalidade.
A estimativa é de que desde que Jair Bolsonaro (PL) assumiu a presidência, mais de 1 milhão de novas armas particulares foram registradas no País. “Já temos um marco regulatório. Agora precisamos de uma política pública em várias frentes diferentes com o intuito de, verdadeiramente, desarmar a população”, acrescenta o professor de Direito da Universidade Federal de Goiás (UFG), Saulo Coelho.
Fonte: O Popular