InícioNotíciasProjeto de hidrelétrica provoca debate sobre cachoeira na Chapada dos Veadeiros

Projeto de hidrelétrica provoca debate sobre cachoeira na Chapada dos Veadeiros

O projeto de instalação de uma Central Geradora Hidrelétrica (CGH) lança incertezas sobre o destino de um dos mais belos cenários da Chapada dos Veadeiros, em Goiás. No município de São João d’Aliança, a gestora da Cachoeira do Cantinho, Zéria Severo, denuncia que tem sido pressionada a aceitar os termos apresentados pela empresa Riovento Energia para aprovar o empreendimento, que está em fase de análise de licença ambiental na Secretaria Estadual de Meio Ambiente (Semad-GO).

“Apresentaram o projeto na Semad, afirmando que eu teria concordado com tudo, que eu seria parceira, mas eu jamais concordei. Fui atropelada no processo. Primeiro, nunca me apresentaram projeto. Segundo, usaram de forma camuflada uma pessoa para fazer estudo social comigo, mas não concordei com a proposta que fizeram. Mesmo assim, entraram com projeto na Semad, alegando minha concordância”, reclama a empreendedora de ecoturismo.

Banhada pelo Rio Cachoeirinha, a região da Cachoeira do Cantinho é um oásis de Cerrado preservado na divisa entre os municípios goianos de São João d’Aliança e Niquelândia. Nos últimos meses, após investimentos em divulgação, infraestrutura e benfeitorias de acesso, o local tem atraído um número crescente de turistas, que revelam encantamento com a beleza do atrativo natural.

A fazenda ainda abriga a Cachoeira das Paredes, alcançada após uma trilha de 3km, onde a caminhada revela paisagens exuberantes, além de um percurso de escalada em paredões rochosos.

“Temos um potencial maravilhoso de desenvolvimento, dediquei muito esforço para chegar a este ponto, mas, agora, tudo pode se perder. Entrei com um manifesto na Ouvidoria, o pessoal da Semad veio fazer uma vistoria, mas estou insegura quanto ao desfecho dessa história. A subsistência da minha família depende da Cachoeira do Cantinho”, explica Zéria Severo.

Engenheiro ambiental da empresa Riovento Energia, Hugo Volkmer rebate os argumentos da gestora da Cachoeira do Cantinho e afirma que o projeto de implantação da CGH não toca a propriedade de Zéria Severo, tendo infraestruturas previstas para construção na margem oposta do Rio Cachoeirinha. “Iniciamos o desenvolvimento e prospecções da CGH Garbino em meados de 2022 e, desde então, temos evoluído nos estudos ambientais e de outorga de recursos hídricos. A empresa vem apresentando o projeto à população dos municípios desde junho de 2024, avaliando a percepção pública. Com isso, buscamos ainda coletar sugestões e direcionamentos de medidas compensatórias que façam sentido”, comenta. 

“As prefeituras dos municípios deram diversos direcionamentos importantes à empresa, solicitando melhorias nas estradas, nos banheiros, nas trilhas, interconexão entre o complexo Cantinho-Paredes com os outros ativos a jusante — atualmente não explorados e desconhecidos. Acredito na coexistência de ativos turísticos e energéticos naquele ponto, pois o benefício é mútuo”, completa Volkmer.

Energia para 3 mil famílias

Segundo o engenheiro ambiental, o projeto tem a intenção de gerar energia para abastecer até 3 mil famílias da região. O investimento para implantação ainda não está definido, pois “depende de delineamentos decorrentes do licenciamento ambiental”. Hugo Volkmer ainda cita que a gestora da Cachoeira do Cantinho teria autorizado outra empresa a realizar empreendimento semelhante. “Caso o empreendimento esteja na propriedade dela, ela aprova. Isso consta no processo ‘SS 148.060.068’, da concessionária Equatorial. O projeto nessa margem tinha até CNPJ e nome: chama-se ‘CGH Nova Energia 1’. Imagino que a dona Zéria tenha receio de que uma vez que o projeto seja implantado na margem oposta, ela possa não receber a mesma quantia de arrendamento acordada pela empresa que faria na margem dela”, comenta.

“Pessoalmente, tentei contato com dona Zéria, ao menos cinco vezes, e não obtive retorno. Eu a vejo como uma figura muito importante na região e gostaria de contar com ela também na construção dessa matriz de medidas mitigatórias. É um lugar para ser conservado. E, nesse sentido, fico muito tranquilo acerca do caminho que a Riovento adotou para realizar o desenvolvimento desse processo. Será um projeto que vai trazer muitos benefícios. Estamos abertos sempre para contato com a proprietária e com outros envolvidos que porventura queiram opinar ou saber mais sobre o projeto”, argumenta Volkmer. 

Zéria Severo, no entanto, rechaça a versão apresentada pela Riovento Energia de que teria autorizado outra empresa a realizar o empreendimento. “Isso é mais uma forma de tentar me silenciar. Havia, sim, outra empresa interessada, com a qual vínhamos discutindo vários pontos, inclusive a implantação de uma Reserva Particular do Patrimônio Natural (RPPN). Era uma abordagem completamente diferente, mais respeitosa e transparente. Ainda assim, não avançou. Nenhum contrato foi assinado e as conversas cessaram”, diz a gestora da Cachoeira do Cantinho.

“Continuo focada em cuidar das cachoeiras do Cantinho e Paredes, onde há indícios, inclusive, da presença do ameaçado pato-mergulhão. Nosso temor é que a implantação da CGH reduza a vazão do rio e a construção de uma casa de força prejudique a paisagem, afastando os turistas da região. Além disso, estamos falando de uma ilha de vegetação que já sofre vários impactos: um enorme número de pivôs irrigando o solo, um imenso campo desmatado. A Cachoeira do Cantinho é o que resta para sobrevivência da fauna e flora”, defende Zéria Severo.

Autor do relatório produzido a partir da pesquisa de campo para avaliação da viabilidade do empreendimento da CGH Garbino, o geógrafo Wilson Lopes Mendonça, professor na Universidade Estadual de Goiás, contradiz parte do depoimento da gestora da Cachoeira do Cantinho. “Em momento algum o contato foi ‘camuflado’ como ela aponta. Desde o início, identifiquei-me e disse quem representava. Algo diferente seria depor contra minha reputação de longos anos como profissional e acadêmico. Foi uma colocação infeliz por parte da dona Zéria, que tem toda a legitimidade para questionar o projeto e propor contrapartidas compensatórias para o ecoturismo. É necessário abrir esse canal de diálogo”, afirma.  

Necessidade de audiência pública

A reportagem tentou, via assessoria de imprensa e Lei de Acesso à Informação, obter mais detalhes sobre o projeto de licenciamento ambiental em curso na Semad/GO, mas não obteve retorno. O órgão estadual apenas confirmou a existência da análise, mas não ofereceu maiores esclarecimentos. Diretor executivo da empresa Tema Ambiental e professor da Puc-Minas, o biólogo Fabiano Silva tem notória experiência no tema. Segundo o especialista, uma CGH apresenta impacto consideravelmente menor em relação a uma grande usina hidrelétrica, sem necessidade de barramento e opera a fio d’água.

“Tanto que é classificada como uma forma de geração de energia renovável. O tempo inteiro precisamos ampliar a capacidade energética para atender as necessidades humanas, em hospitais, residências, conservação de alimentos e outras. Mas, evidentemente, é fundamental compreender e avaliar com cautela os aspectos socioambientais que envolvem qualquer projeto e dar voz à população. Para isso, o processo de licenciamento ambiental contempla um momento importante, que é a audiência pública, quando o empreendedor é obrigado a detalhar todo o projeto: qual é o impacto previsto, as ações mitigatórias e compensatórias”, explica Fabiano Silva.

“A população também tem espaço para reivindicar contrapartidas. Pode-se solicitar tanto programas de monitoramento quanto de reparação. Esses locais podem servir para reflorestamento, ações para fomentar o ecoturismo sustentável, por exemplo. Bem negociado e fiscalizado, é possível beneficiar a região, trazendo compensações benéficas aos impactos inerentes à intervenção realizada no rio”, completa o especialista.

Outros desafios locais

Em São João d’Aliança-GO, município conhecido como Portal da Chapada dos Veadeiros, apesar de anos recentes de mais investimento e incentivo ao ecoturismo, divulgando atrativos exuberantes como a Cachoeira do Label (a mais alta de Goiás, com 187m) e a Bocaina do Farias (uma fenda subterrânea repleta de água cristalina), a realidade é desafiadora e complexa. O avanço do agronegócio consome as poucas áreas de Cerrado remanescente e tradicionais pontos de visitação para banho são fechados, pois diversos proprietários não apreciam compartilhar o espaço com turistas.

O caso mais recente diz respeito à Fazenda América, onde um trecho de trilha, próximo à Cachoeira das Andorinhas, foi fechado. A área apresentava um sensível remanescente de Cerrado, que acabou absolutamente devastado para dar lugar a plantio de monocultura. A administradora de empresas Silvia  Mesquita, integrante do movimento ambientalista local, chama a atenção das autoridades para o zelo ao patrimônio natural.

“Não é justo que lugares de exuberante beleza ambiental tenham acesso restringido por conta de atividades privadas, que degradam o bioma nativo. O Cerrado agoniza, as mudanças climáticas se acentuam e pressionam toda a sociedade. Precisamos construir um novo acordo de convivência, restaurando áreas degradas e permitindo o cumprimento do artigo 225 da Constituição Federal, que determina o meio ambiente como um bem de uso comum, essencial para a qualidade de vida das gerações atuais e futuras”, reivindica.

Área desmatada em São João d'Aliança-GO, próxima à Cachoeira das Andorinhas

Área desmatada em São João d’Aliança-GO, próxima à Cachoeira das Andorinhas

Fonte: Correio Braziliense

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