A Associação Quilombo Kalunga (AQK) denuncia que dois quilombolas foram vítimas de tortura e prisão ilegal por policiais militares dentro do próprio território. O caso aconteceu na última semana, quando dois homens calungas, de 25 e 39 anos, foram presos pela Polícia Militar do Estado de Goiás (PM-GO) sob alegação de invasão de domicílio, furto, dano e posse ilegal de arma de fogo. Os homens ficaram mais de dez horas sob custódia.
O imbróglio é fruto de uma disputa com um ocupante não calunga de uma área dentro do território quilombola.
“O tempo da escravidão, segundo a História, passou. Para mim, não. Ali, eu senti que eu ainda fazia parte do tempo dos escravizados e que eles eram os meus senhores”, emociona-se Roberto*, de 39 anos, ao lembrar das cenas de violência que vivenciou em 11 de janeiro deste ano. Naquele dia, ele subiu em sua moto no início da tarde e deixou para trás a zona urbana de Cavalcante. O homem buscou o sobrinho Felipe*, de 25 anos, na comunidade calunga em que ele mora e ambos partiram rumo a Fazenda Panorama, que fica dentro do território calunga. Entretanto, acabou envolvido em um episódio que define como traumatizante.
A irmã de Roberto havia recebido autorização da AQK para se mudar para a fazenda. Ela e o marido estavam instalados no local há cerca de duas semanas e já tinham levado galinhas e cachorros para lá. Entretanto, com uma gestação próxima do fim, a mulher precisou começar a passar mais tempo na cidade. Então, Roberto e Felipe foram até a fazenda para alimentar os animais. “Quando cheguei lá, a porteira e a porta da casa estavam abertas. Tudo revirado. Pensei que fosse coisa dos cachorros. Limpamos tudo, demos comida para eles e fomos embora”, conta Roberto.
Quando a dupla estava a cerca de oito quilômetros de distância da fazenda, foram abordados por uma viatura do Batalhão Rural e por uma outra caminhonete, ocupada por um homem não calunga que havia denunciado à polícia uma suposta invasão da propriedade e o furto de itens e equipamentos pessoais. “Não deixaram falarmos nada. Nos algemaram com as mãos para trás. A moto caiu no chão e quebrou o retrovisor”, diz Roberto. O tio e o sobrinho foram levados de volta para a fazenda. “Lá, nos bateram e nos xingaram”, desabafa.
Roberto relata que a violência aumentou depois da descoberta de uma arma dentro da casa. “Não era nossa”, frisa. De acordo com o boletim de ocorrência do caso, quando o homem não calunga procurou a polícia, ele afirmou ter estado no local anteriormente e constatado a presença de um saco com insumos para cartuchos, que disse não pertencerem a ele. O documento detalha que já na fazenda, os policiais encontraram uma espingarda cartucheira calibre .20 desmontada em três partes, que estavam escondidas embaixo da cama e no guarda-roupas.
Segundo Roberto, em determinado momento os policiais viraram Felipe, que estava algemado com as mãos para trás, de barriga para cima e começaram a jogar água no rosto do rapaz. “Tortura. Mas não tinha como inventar história. Pensei: rapaz, nem que eu morra, mas morra falando a verdade. Se tivessem matado meu sobrinho, minha vida também acabava ali”, enfatiza.
Roberto afirma que um dos momentos de maior temor foi quando os homens perguntaram se algum conhecido sabia que eles estavam ali. “Disse que sim, que toda minha família sabia.” Depois disso, os homens foram levados de volta para a zona urbana de Cavalcante. “Nós fomos na viatura e minha moto na carroceria (da caminhonete) dele (denunciante), o que achei muito estranho”, comenta Roberto. Já na cidade, foram levados para a Praça Diogo Telles Cavalcante, onde permaneceram presos por algum tempo dentro da viatura. À noite, foram encaminhados para a delegacia da cidade, que não contava com um delegado à disposição para ouvi-los. Apenas lá, eles conseguiram usar o banheiro. Um parente levou comida e água para eles se alimentarem.
Por volta de 1 hora da madrugada do dia seguinte, eles foram levados para a delegacia de Campos Belos, a cerca de 140 quilômetros de distância, onde foram ouvidos e liberados pelo delegado presente. No momento, Roberto se diz mais tranquilo, mas ainda assim muito constrangido com tudo o que aconteceu. Segundo ele, o sobrinho está mais sensível. “Está comendo e dormindo mal. Tento falar para ele que o pior já passou”, afirma
O advogado da AQK, Rômulo Rodrigues Corrêa, destaca que tentou acessar os dois quilombolas quando eles ainda estavam na delegacia de Cavalcante, mas foi impedido pela PM-GO. “Só consegui em Campos Belos”, diz. Ele defende que os homens foram presos ilegalmente. “O denunciante alegou furto e dano, mas eles fizeram o oposto. Levaram animais para o local”, explica. A mesma lógica vale para a invasão de domicílio. “O território é calunga. Não tem como invadir uma terra que é sua”, argumenta. Em relação a arma, Corrêa conta que membros da AQK acreditam que ela foi implantada no local para prejudicar os quilombolas.
Calungas lutam pela titulação definitiva
O Sítio Histórico do Patrimônio Cultural Kalunga (SHPCK) foi criado pela lei estadual n° 11.406, de 1991. Em 2009, um decreto presidencial declarou de interesse social, para fins de desapropriação, os imóveis sob domínio válido abrangidos pelo Território Quilombola Kalunga (TQK).
As fronteiras do território já foram reconhecidas e devidamente limitadas, conforme relatório técnico de identificação e demarcação elaborado pela Fundação Cultural Palmares. Desde então, os calungas lutam pela titulação definitiva de todas as terras que compõem o território. De acordo com o Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária (Incra), a Fazenda Panorama foi desapropriada por meio de ação requerida pelo instituto à Justiça Federal.
Em novembro de 2015, foi firmado um Contrato de Concessão de Direito Real de Uso (CCDRU) do Domínio), que poderá ser expedido pelo Incra somente após o trânsito em julgado da referida ação judicial de desapropriação”, comunica trecho de nota enviada pelo Incra. O instituto explicou ainda que não identificou ocupantes no imóvel rural na ocasião dos trabalhos de vistoria e avaliação que subsidiaram a ação de desapropriação e que as ocupações ocorreram posteriormente.
Em maio de 2023, a Justiça Federal determinou, em caráter liminar, a imediata reintegração de posse, em favor dos quilombolas, de todas as áreas invadidas no interior do território calunga. A sentença acolheu pedido feito em Ação Civil Pública (ACP) assinada pelo Ministério Público Federal (MPF) em agosto de 2021. Dias após a decisão, foi produzido um laudo técnico sobre os conflitos possessórios no território.
No documento, consta o nome do homem que denunciou os dois quilombolas à polícia como um dos ocupantes de áreas de conflito possessório e as coordenadas exatas do local a ser desocupado. Em junho do ano passado, um oficial de justiça compareceu na Fazenda Panorama, onde foram cumpridos três mandados, dentre eles o do denunciante. Segundo o relato do oficial de justiça, foi constatada a existência de um curral em ruínas e “uma pequena casa em alvenaria de adobe em péssimo estado de conservação aparentemente inabitada e abandonada”, tendo a impressão de que “o local está abandonado há vários anos”.
No mês seguinte, uma parte dos réus da ACP conseguiu, por meio de recurso, suspender a decisão liminar até julgamento definitivo do mérito. Entretanto, o nome do homem envolvido nos eventos do dia 11 de janeiro não consta na lista de pessoas que entraram com o pedido.
Família de calungas retorna à Fazenda Panorama
Na noite da última segunda-feira (15), o advogado da AQK esteve na Fazenda Panorama acompanhado de policiais.
Os cadeados colocados pelo homem que denunciou a dupla de quilombolas à polícia foram quebrados e uma família de calungas foi estabelecida no local. Segundo Corrêa, conflitos possessórios não são incomuns em Cavalcante. Para evitar que outras pessoas repitam as ações do homem que denunciou os calungas à polícia, a associação pretende acionar a Justiça contra ele. “Uma pessoa não pode chegar na delegacia, contar uma história e mover a máquina do estado em benefício próprio”, explica o advogado. A AQK também pretende ingressar na Corregedoria da Polícia Militar do Estado de Goiás (PM-GO) contra os policiais e levar as vítimas para serem ouvidas pelo Ministério Público do Estado de Goiás (MP-GO).
PM-GO diz que arrendatário acionou Batalhão Rural
Questionada se os dois quilombolas seriam investigados criminalmente, a Polícia Civil do Estado de Goiás (PC-GO) orientou a reportagem a procurar respostas junto à PM-GO. Em nota, a PM-GO informou que o caso foi devidamente registrado no dia 11 de janeiro, data “em que uma equipe do Batalhão Rural foi acionada pelo solicitante, que é arrendatário da fazenda, para averiguar situação de arrombamento e furto em sua propriedade”. A corporação comunicou ainda que “a equipe policial localizou os envolvidos na ocorrência bem como uma arma de fogo ilegal, sendo as partes, juntamente com a arma apreendida, encaminhadas para a Delegacia de Polícia de Cavalcante e apresentadas ao Delegado de Polícia para a realização dos procedimentos cabíveis ao caso”. Por fim, a PM-GO reafirmou que tem “compromisso em atuar dentro da legalidade e responsabilidade, protegendo o cidadão goiano”
Fonte: O Popular