De nove processos que tramitam na Justiça e que levam o nome do médico Américo Lúcio Neto, de Niquelândia, ao menos cinco são movidos por mulheres que o acusam de negligência e erro médico em partos que, segundo elas, culminaram na morte do bebê ou em sequelas – como a perda do útero. Algumas das mulheres também relatam humilhações por parte do médico, que as teria chamado de “boi” e dito que “mulher gorda não podia engravidar, porque só dava trabalho”. Américo foi afastado do hospital municipal onde atuava, mas ainda é investigado em três inquéritos da Polícia Civil. A reportagem entrou em contato com a defesa do profissional, mas ainda não teve retorno. Em reportagem anterior, o advogado de Américo negou as acusações.
Em um dos processos aos quais a reportagem teve acesso consta um laudo do Instituto Médico Legal (IML) que aponta que um recém-nascido morto durante o parto tinha hematomas (equimoses), que segundo a defesa, teriam sido provocados pela “brutalidade” de Américo ao tentar tirar a criança da barriga da mãe.
Já em outro, a defesa de uma mulher relata que ela perdeu o útero após ter seu tratamento negligenciado pelo médico de Niquelândia.
Para preservar a identidade das mulheres, a reportagem optou por usar nomes fictícios.
Dois dias de vida
A defesa de *Maria, de 39 anos, narra que no dia 14 de dezembro de 2016, por volta de 8h, sua cliente deu entrada no Hospital Municipal Santa Efigênia, em Niquelândia, onde deu à luz a uma menina em parto realizado por Américo.
No entanto, conforme o processo, o hospital não teria fornecido “os meios necessários para garantir a integridade física da recém-nascida” por não ter, no momento do parto, médico pediatra para acompanhar o procedimento. De acordo com a defesa, a falta de instrumentos e de pediatra impossibilitou até mesmo a limpeza da menina, que não chorou ao nascer.
A defesa relata que no dia seguinte ao nascimento, a bebê começou a passar a mal, mas a mãe foi informada que “era normal”. No dia 16, a recém-nascida teria começado a gemer e apresentar dificuldades respiratórias. Ao ter soro aplicado, a menina soltou “uma secreção amarela” pela boca.
O médico solicitou encaminhamento da menina para Goiânia, o que não foi possível devido à falta de ambulância. De acordo com a defesa, “por não ter tido qualquer avaliação nos primeiros minutos de sua vida, nem assistência, fator extremamente importante, a menor veio a falecer” no mesmo dia, por volta das 18h30.
“O hospital e o médico assistente da genitora deveria agir de forma diligente e prudente, o que, na espécie, não aconteceu, ante a situação de desfalque profissional (pediatra) que promovesse o correto acompanhamento da menor e da gestante na hora em trabalho de parto”, alegou a defesa, que afirmou que “os danos sofridos são decorrentes da negligência, imperícia e imprudência do médico e do hospital que assistiu a genitora da menor”.
A família pediu o valor de R$ 5 mil de indenização por dano material, para custeio do funeral; R$ 180 mil de pensão por morte e R$ 150 mil em reparação por danos morais.
Hematomas pelo corpo
Num processo datado de outubro de 2021, a defesa da pescadora *Rita, de 37 anos, conta que a mulher fez todo o acompanhamento de sua gravidez junto à rede municipal de saúde de Niquelândia. Após um exame de ultrassom, em abril de 2021, um médico que acompanhava Rita indicou que ela fosse até o Hospital Municipal Santa Efigênia para que se internasse para o parto, uma vez que ela já estava com 3 centímetros de dilatação e o bebê em tamanho maior que a média gestacional.
Porém, ao dar entrada no hospital no dia 5 do mesmo mês, já com 37 semanas e meia de gestação, Rita foi atendida por Américo Lúcio e teria ouvido dele que “gravidez era pra gente jovem” e que “gente velha só dava trabalho para o médico”.
Devido ao fato de a mulher estar com sangramento e sem contrações, a família, de acordo com a defesa, pediu para que o parto fosse cesária. No entanto, Américo teria negado sob o argumento de que a mulher já tinha três filhos e poderia perder esse.
A defesa narra que durante o parto, no dia 6, Américo fez um “pique” – que é a incisão entre o ânus e a vagina – para auxiliar as contrações. Porém, depois de 40 minutos do procedimento, o bebê parou de se mexer.
A mando de Américo, a enfermeira teria começado a “empurrar” a criança e forçar sua saída com o cotovelo. De acordo com a defesa, Américo não conseguiu tirar o bebê, que ficou 40 minutos preso no canal vaginal. Quando a criança saiu, diz a defesa, já estava desfalecida e sem choro. Um pediatra teria entrado na sala depois do parto e feito massagem cardíaca no bebê, que estava com hematomas pelo corpo, além de injetar adrenalina, mas já era tarde.
O laudo do Instituto Médico Legal (IML) concluiu que o bebê morreu por hipóxia (baixa quantidade de oxigênio) intra-útero, apontando ainda a existência das equimoses (hematomas).
No processo, a defesa de Rita pede o valor de R$ 400 mil em indenização contra o hospital, Américo e o médico pediatra. A alegação é de negligência médica e a insistência do médico no parto normal, que usou “técnicas arcaicas” – se referindo à prática de empurrar o bebê com o cotovelo – que teriam culminado na morte do bebê.
“Parto atrasado”
A lavradora *Cleide, de 41 anos, teve uma gravidez considerada de risco e, assim como Rita, foi acompanhada integralmente pela rede municipal de saúde de Niquelândia. De acordo com o relato da defesa em um processo de 2021, a mulher passou a ser assistida por Américo e tinha o parto previsto para acontecer no dia 27 de outubro de 2020.
Uma ultrassom do dia 16 de outubro apontou que Cleide já estavam com 38 semanas e 4 dias de gestação. A mulher teria ouvido de Américo que se ela não entrasse em trabalho de parto até o dia 27, deveria ir ao Hospital Municipal Santa Efigênia para marcar o procedimento.
Mesmo sem ter entrado em trabalho de parto, a defesa narra que Cleide passou a sentir dores abdominais e percebeu que os movimentos do bebê haviam diminuído. Ela procurou o hospital no dia 26, mas ouviu de Américo que “ainda não era a hora do parto”. O homem, então, teria marcado o parto para o dia 9 de novembro, quando a mulher já estaria com mais de 42 semanas de gestação.
Cleide voltou a sentir dores e procurou de novo o hospital, no dia 3 de novembro. Um outro médico a atendeu dessa vez e pediu uma ultrassonografia. Porém, quando voltou com o resultado do exame em mãos, Américo a atendeu e, segundo a defesa da mulher, teria se recusado a olhar o exame, reafirmando a ordem de que ela voltasse no dia 9.
No entanto, a mulher foi internada no hospital no dia 7 de novembro devido às fortes dores que sentia. Ao dar entrada no centro cirúrgico, segundo a defesa, a frequência cardíaca do bebê era de apenas 90 batimentos por minutos (considerada baixa). Após fazer o parto, Américo informou à mãe que o bebê havia nascido, mas não resistiu e morreu.
De acordo com o laudo do Serviço de Verificação de Óbito (SVO), o bebê morreu em decorrência da síndrome de aspiração meconial (SAM), quando ele aspira vestígios de fezes presentes no líquido amniótico. Ainda segundo o laudo, “não existe causa definida para a SAM, mas alguns fatores de risco podem ser apontados como a pós-maturidade”, quando a gestação ultrapassa 40 semanas.
A defesa, diz ter havido negligência e imprudência por parte do hospital e de Américo, uma vez que o adiamento do parto – que ocorreu quase 15 dias após o previsto – teriam contribuído diretamente para a morte do bebê, pede o valor de R$ 200 mil em indenização.
Perda do útero
Em um processo aberto em 2016, a defesa a dona de casa *Silvia, de 30 anos, conta que a mulher engravidou em 2012 e, durante todo o período do pré-natal, realizado no Hospital Santa Marta, unidade particular em Niquelândia, a gestação ocorreu sem imprevistos.
No dia 14 de julho de 2013, Silvia entrou em trabalho de parto e foi internada no Santa Marta. No entanto, o médico que havia acompanhado a gestação da mulher não foi encontrado e o procedimento precisou ser feito por Américo Lúcio.
A defesa narra que a cirurgia cesária foi realizada normalmente e o bebê nasceu bem. Porém, nos dias que se seguiram, a mulher começou a passar mal com inchaço na barriga, que ganhou uma coloração amarelada, além de febre e falta de apetite. No dia 22 de julho, a mulher foi internada no hospital com um quadro de infecção, “estando os pontos do lado direito [da barriga] todos estufados.”
Ainda segundo a defesa, no hospital, Américo teria aberto novamente a barriga da mulher “com os dedos”, apertando-a para tirar o pus e aplicando açúcar esterilizado. Esse mesmo procedimento teria sido feito por ele “dois dias seguidos, sem melhora no quadro, que a cada dia só piorava.”
Silvia foi transferida para uma hospital estadual em Goiânia, onde foi diagnosticada com infecção puerperal. Após o estado de saúde da mulher se agravar, ela foi levada para outro hospital público, onde a equipe médica constatou que a infecção havia se espalhado.
A mulher, então, precisou ter o útero removido, com aspiração da secreção que já havia se espalhado em outros órgãos. Ela recebeu alta no dia 1º de agosto de 2013.
Conforme a defesa de Silvia, tanto o Hospital Santa Marta quanto Américo agiram com “culpa quando, de forma negligente, imprudente e imperita, não tomaram as necessárias cautelas a fim de evitar os casos de infecção”.
A higienização insatisfatória “foi diretamente responsável pela perda de um dos órgãos mais importantes na vida de urna mulher, o útero, bem como pela frustação de não poder mais gerar um filho”, argumentou a defesa, ao pedir pouco mais de R$ 600 mil em indenização.
Humilhações
Hoje com 35 anos, a doméstica *Carla tinha 31 quando foi atendida no Hospital Municipal Santa Efigênia pelo médico Américo Lúcio pela primeira vez, em abril de 2018, quando ocorreu o descolamento de sua placenta.
A mulher conta que estava com 4 meses de gestação. Apesar de ainda nem conhecer o médico, Carla diz o tratamento inicial recebido já a deixou constrangida. “Ele perguntou minha idade, e quando falei, ele disse que ‘velha não podia ter filho e que eu ia perder mesmo”, narra.
Segundo ela, Américo tinha como costume tratá-la mal durante as consultas e até ofendê-la, se referindo a ela como “gorda” e “boi”. Os insultos, segundo ela, não teriam cessado nem na hora do parto.
“Eu já estava deitada para ser anestesiada. Ele estava rindo e falou para o anestesista: ‘tem um boi ali. Se você acertar a coluna dele, te dou um prêmio’, e riu de gargalhar”, conta, acrescentando que a enfermeira tentava acalmá-la enquanto ela chorava.
A parto de sua filha foi bem-sucedido, mas segundo Carla, o tratamento recebido pelo médico fez com que ela desenvolvesse depressão. “Tomei trauma. Fico em casa, não tenho vontade de sair. Quase fiz uma besteira comigo mesma porque fiquei tão deprimida, tão enojada de mim, de olhar no espelho e lembrar de tudo que ele falou”, desabafa.
Ana Paula Veiga, advogada de Carla, informou que se prepara para ingressar com um processo na área cível contra Américo. Segundo ela, além de Carla, outras três ex-pacientes de Américo a procuraram e também devem acioná-lo na Justiça.
Investigação policial
O médico Américo Lúcio Neto é investigado em três inquéritos abertos pela Polícia Civil de Niquelândia após denúncias de possíveis vítimas.
De acordo com o delegado Cássio Arantes, que cuida de um dos inquéritos, o laudo da morte de um dos bebês não mostrou qualquer ligação entre a conduta do médico e o óbito, uma vez que, segundo ele, não é possível, pelo documento, saber se o acompanhamento gestacional tem relação com a morte.
No entanto, Arantes informou que investiga também as possíveis ofensas feitas pelo médico à ex-paciente, o que pode fazer com que ele seja indiciado por injúria e difamação, caso a denúncia se comprove.
Já o delegado Gerson José, que conduz os outros dois inquéritos informou que as investigações prosseguem.
O que dizem os hospitais
Procurada pela reportagem, a assessoria do Fundo Municipal de Saúde (FMS), no Hospital Municipal Santa Efigênia, declarou que “ao tomar conhecimento das demandas judiciais propostas em desfavor do município em razão dos supostos erros médicos”, providenciou imediatamente “o afastamento do médico de suas atividades nas unidades de saúde de Niquelânia.”
O órgão destacou ainda que ainda que “não há decisão judicial que confirme a ocorrência dos fatos” e que, até então, “não havia reclamações/denúncias perante a Secretaria de Saúde” contra Américo Lúcio.
O FMS finaliza dizendo estar na fase de conclusão de um procedimento interno para confirmar o afastamento do médico de todas as unidades de saúde do município.
A reportagem também tentou contato nesta terça-feira (30) com o Hospital Santa Marta, citado em um dos processos, por e-mail e telefone, mas não obteve retorno. O espaço permanece aberto.
O que diz o médico
A reportagem entrou em contato, por telefone e Whatsapp, com a defesa de Américo Lúcio às 15h05 desta terça-feira (30) e pediu um posicionamento sobre os processos e investigações envolvendo o médico. Dois novos contatos foram feitos às 13h32 e às 16h34 desta quarta-feira (31) com a defesa, que novamente afirmou que daria um retorno. O espaço permanece aberto.
Cremego
Em nota, o Conselho Regional de Medicina de Goiás (Cremego) disse que não informa sobre denúncias, processos e sindicâncias regionais. “Art. 1º A sindicância e o processo ético-profissional (PEP) nos Conselhos Regionais de Medicina (CRM) e no Conselho Federal de Medicina (CFM) serão regidos por este Código de Processo Ético-Profissional (CPEP) e tramitarão em sigilo processual.”
Fonte: O Popular