InícioNotíciasLixões a céu aberto desafiam a Chapada dos Veadeiros

Lixões a céu aberto desafiam a Chapada dos Veadeiros

A região é enaltecida como um refúgio ecológico, mas uma contradição evidente persiste ao longo do tempo. Destino de turistas de todo o mundo, que buscam conexão com as cachoeiras e outros encantos do Cerrado, a Chapada dos Veadeiros, em Goiás, ainda não encontrou solução efetiva para os problemas provocados pelos lixões a céu aberto, apesar do que preconiza a Política Nacional dos Resíduos Sólidos (Lei Federal 12.305), sancionada em agosto de 2010, e o Novo Marco Legal do Saneamento Básico (Lei nº 14.026), de julho de 2020.

Uma das determinações das normas versa sobre a proibição de depósitos de lixo em áreas inadequadas, mas após 14 anos, desde a primeira legislação, e sucessivos adiamentos para a aplicação da regra, cerca de 3 mil municípios brasileiros ainda alegam falta de recursos e mantêm uma prática degradante ao meio ambiente, ameaçando a qualidade da água, do solo e a biodiversidade.

O prazo final, se não houver uma nova e inesperada mudança nos planos, esgota-se no próximo mês de agosto, mas o cenário segue incerto e desafiador.

Um exemplo claro está em São João d’Aliança (GO), cidade conhecida como Portal da Chapada dos Veadeiros, localizada a cerca de 160km de Brasília (DF). Os belos atrativos naturais — como a Cachoeira do Label, a mais alta do estado goiano (com 187 metros de altura) — e a pujante agricultura não são os únicos temas que mobilizam a comunidade local. Moradores reclamam com frequência da falta de uma gestão correta dos resíduos.

Toda a sujeira é despejada em uma área a céu aberto, misturando-se a manchas de vegetação nativa e terreno degradado. Quando o material se acumula em grandes quantidades, a rotina padrão prevê a queima do lixo, com diversas peças de potencial tóxico, provocando uma fumaça fétida que cobre o município com população de 13.984 habitantes, de acordo com o Censo 2022 realizado pelo IBGE.

“É insuportável. Há anos isso sempre acontece e parece não haver solução. Muitas pessoas relatam dor de cabeça e crises respiratórias quando a fumaça surge. Às vezes, dura uma semana inteira com o ar poluído. Não bastasse isso, a quantidade de moscas tem aumentado ano após ano. Um médico que atende na UBS suspeita que alguns casos de viroses, especialmente em crianças e idosos, têm relação com esse fenômeno. É um grave problema ambiental e de saúde pública, mas os apelos prioritários da população são ignorados”, protesta a advogada Andressa Paz, integrante do movimento ambientalista local, que acaba de protocolar no Ministério Público de Goiás (MP-GO) um abaixo-assinado com centenas de apoiadores, solicitando providências urgentes.

A participação do MP-GO no imbróglio não é novidade. Em 2019, na comarca de Alto Paraíso (GO), o órgão venceu ação contra a administração municipal, obrigando a desativação do lixão e o cumprimento da legislação ambiental acerca do tema, sob pena de multa diária de R$ 5 mil. Alegando falta de recursos e incompetência do Poder Judiciário para tratar do tema, a prefeitura recorreu da decisão ao Tribunal de Justiça estadual e ao Superior Tribunal de Justiça (STJ), onde sofreu novas derrotas.

“Os impedimentos apresentados pela parte ré, na realidade, são argumentos protelatórios, vazios e indiciários de que os gestores municipais não têm dirigido atenções ao atendimento do interesse público primário”, cita uma das decisões. “Ademais, é digno de nota ser fato público e notório que a Prefeitura de São João d’Aliança tem realizado investimentos no embelezamento da cidade, com enfeites natalinos, bem como construção de espaços de lazer ao longo da rodovia que atravessa a cidade, o que revela que os recursos não são escassos, mas apenas mal destinados”, completa.

As prioridades dadas aos usos dos recursos municipais, de fato, chamam a atenção. Em uma rápida consulta ao Portal de Transparência, é fácil identificar contratos de mais de R$ 200 mil pagos a shows de duplas sertanejas. Nos últimos anos, o escritório de advocacia que defende a prefeitura, inclusive nos sucessivos recursos a respeito do lixão, faturou mais de R$ 1,2 milhão. Por fim, a empresa contratada para elaborar o plano de gestão municipal dos resíduos acumula contratos que somam R$ 195.860 desde 2020. Um estudo com mais de 300 páginas foi apresentado, mas pouco ou nada saiu do papel até agora.

Ignorando sugestões apresentadas pelo próprio documento que encomendou, a administração municipal, chefiada há oito anos pela prefeita Débora Domingues (PL), explica, em nota, que tende a destinar todo o resíduo urbano coletado para aterro sanitário em Águas Lindas (GO), a mais de 200km de distância, ao custo anual estimado em R$ 1,2 milhão. Uma segunda alternativa, ainda em análise, seria a construção local de um aterro sanitário simplificado, orçado em R$ 2,5 milhões, com capacidade para receber até 20 toneladas por dia e operação anual de R$ 400 mil. Uma terceira opção seriam ações relacionadas ao Consórcio Intermunicipal de Saneamento Básico e Ambiental do Nordeste Goiano, mas que ainda não dispõe de valores e metas claras definidas.

O prazo para a execução de uma solução efetiva vence em 2 de agosto, mas parece haver esperança de que um novo adiamento será concedido. “O cenário atual encontrado no município de São João d’Aliança não é diferente da grande maioria dos municípios brasileiros. Provavelmente em função da falta de recursos a serem destinados aos pequenos municípios do país, as metas estipuladas no Marco Legal do Saneamento não serão alcançadas”, diz trecho da nota divulgada pela prefeitura, que alega também dificuldade em dialogar com as pessoas que, por conta própria e sem qualquer apoio institucional, coletam materiais no lixão da cidade. “Tentamos esse contato algumas vezes, mas é um público bastante arredio, que se esconde nas matas sempre que nos aproximamos”, comenta o secretário municipal de Meio Ambiente, Geraldo Bertelli.

Lixão em São João d'Aliança (GO), na Chapada dos Veadeiros
Lixão em São João d’Aliança (GO), na Chapada dos Veadeiros(foto: Movimento ambiental/Divulgação)

Em âmbito federal, o Ministério do Meio Ambiente (MMA) é taxativo em afirmar que não haverá nova dilação de prazo para encerramento dos lixões. Segundo explica Eduardo Rocha, diretor de Gestão de Resíduos, o governo conta com diversos editais e programas aos quais os municípios podem se vincular para resolver o problema, prevendo desde apoio à moradia digna para catadores de materiais recicláveis, até a modelagem de contratos para operação de aterros sanitários. Ponto considerado essencial para o sucesso da iniciativa é a criação de uma tarifa mantendendora do sistema de coleta e tratamento de resíduos, assim como ocorre nos casos de água, esgoto e iluminação pública. As administrações municipais, no entanto, evitam mais uma taxa aos contribuintes, especialmente em ano eleitoral, temendo possíveis prejuízos nas urnas.

“O aterro sanitário deve estar localizado em um raio de no máximo 150km. A gente não recomenda que o município crie um aterro local, pequeno, pois o custo per capita é muito maior do que se for regionalizado. Temos estudos robustos que comprovam isso em todo o mundo. No caso da Chapada dos Veadeiros, o ideal é que os municípios da região se agrupem de forma coletiva para propor uma solução regional para receber os resíduos. Para casos assim, existem linhas de financiamento, com juros subsidiados, mais baixos. O governo federal atua com o município para construir essa solução regional de tratamento de resíduos e destinação. O governo federal apoia em como elaborar e calcular uma tarifa, como modelar um contrato, como fazer um projeto. Temos promovido, especialmente, o desvio de resíduo de aterros e lixões. Mais importante do que fazer o aterramento, mesmo que correto, é reciclar o resíduo”, explica Eduardo Rocha.

Especialistas criticam ‘exportação’ de resíduos

A possibilidade de transporte de resíduos para aterro sanitário localizado a mais de 200km é criticada pelo bacharel em direito Ronei Alves da Silva, representante do Movimento Nacional de Catadores. “Na grande maioria dos municípios, não existe vontade em cumprir o que determina a Política Nacional de Resíduos Sólidos. As prefeituras têm muito mais interesse em transportar os resíduos por quilômetros e quilômetros de distância — e é complexo falar quais são os motivos disso —, mas o fato concreto é que há muito dinheiro envolvido. Então, para os municípios, o interesse é transportar o resíduo para quanto mais longe, melhor. Há muitos anos já se poderia ter implantado a coleta seletiva em todos os municípios goianos, para fechar os lixões definitivamente, mas ainda não houve interesse para isso”, comenta.

Para Fábio Cidrin, especialista em gestão integrada de resíduos sólidos, a solução para os municípios, especialmente aqueles com população inferior a 50 mil habitantes, passa pelo incentivo à compostagem do lixo orgânico, favorecendo a produção de adubos que poderiam ser utilizados em recuperação de áreas degradadas ou mesmo em projetos agrícolas. “O ideal é que o processo se inicie por meio da educação ambiental e fiscalização, com cada família e estabelecimento fazendo a separação entre lixo seco e orgânico. Com isso, você consegue dar o destino adequado a cada tipo de material e apenas o rejeito, cerca de 15% a 30%, iria para o aterro sanitário, que funciona melhor de forma consorciada entre municípios de uma mesma região”, opina.

Um bom exemplo em Alto Paraíso

Em Alto Paraíso de Goiás, município mais visitado pelos turistas na Chapada dos Veadeiros, o lixão também ainda é uma realidade, mas, desde 2011, o dano ambiental é reduzido, graças ao trabalho da Reciclealto, uma organização civil que, de forma voluntária, iniciou o processo de coleta seletiva para envio de materiais à indústria de reciclagem. Em parceria com a prefeitura local, que cedeu um galpão para o desenvolvimento das atividades, a entidade tem promovido uma poderosa transformação na cultura de tratamento de resíduos sólidos na região. Segundo dados do próprio grupo, de 2014 a 2022, foram recolhidas 212 toneladas de plástico, 594t de papelão, 789t de sucata e 238t de vidro, que tiveram destinação correta, bem longe do lixão.

“Como sempre falo, o primeiro passo é combater o lixo mental das pessoas. Na Chapada dos Veadeiros, o município de Alto Paraíso é o mais avançado em termos de destinação correta de resíduos. Temos um trabalho de 14 anos da Reciclealto, uma associação que destina em média 15 toneladas por mês de resíduos recicláveis para destino correto, fora sucatas e vidros. A nossa realidade não é tão agressiva, estamos minimizando a nossa estadia na Chapada dos Veadeiros”, comenta Luisaço, fundador da Reciclealto.

Fonte: Correio Braziliense

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